Desde os tempos do Estado
Novo que existe em Portugal um quadro terapêutico de excelência, passível de
ser aplicado como anestésico cerebral à população em geral, sendo imune ao
mesmo apenas um escasso número de lusitanos.
Esse quadro é composto por
três elementos, a saber: “Fátima, Fado e Futebol”, estando disponível no
mercado com a designação TRIEFE, nada tendo a ver com aquele medicamento que as
senhoras usam em determinadas alturas do mês para aliviar as dores menstruais.
Pode, em caso de necessidade, ser complementado, de acordo com o simposium
terapêutico, por alguns analgésicos, fornecidos pelos mesmos distribuidores do
anestésico.
Antes de avançar na minha
narrativa (termo agora muito na moda), quero começar por esclarecer que também
vou a Fátima, gosto de ouvir fado (sabe tão bem ouvi-lo quando se está a
milhares de quilómetros de distância) e até tolero o futebol, embora as minhas
preferências vão para o ciclismo.
Mas desengane-se quem
pensa que a dita terapia foi um exclusivo do Estado Novo salazarento e da
primavera marcelista (uma corruptela do primeiro), porque a mesma tem vindo a
ser utilizada diariamente, de forma brilhante, eu diria mesmo magistral.
Começando pelo futebol,
durante a semana passada Portugal viveu imerso na questão de vida ou de morte
que é para este país e para a sua agonizante massa humana que por cá se vai
aguentando, o apuramento da seleção para o Mundial de 2014. Tanto quanto sei,
não obstante o conjunto de vedetas milionárias cheias de tiques que não lembram
ao diabo, a seleção não conseguiu corresponder às expetativas em termos de
futebol jogado, mas para já os aficionados têm tema para conversa que se
prolongará até terça-feira que vem.
Depois, a 13 de outubro, tivemos
Fátima, local de deslocação obrigatória para milhares e milhares de pessoas
aflitas que ali vão procurar inspiração divina para enfrentar os problemas que as
afetam no seu dia-a-dia, já que quem as devia ajudar na Terra só lhes cria
obstáculos da mais variada índole. Acresce que a imagem de Nossa Senhora de
Fátima tinha ido ao Vaticano, embora tenha sido substituída, dos poros de
muitos peregrinos, apesar do terreno sagrado que pisavam, emergiu uma amálgama
de desânimo e irritabilidade, porque se sentiram frustrados nas suas expetativas,
como se não lhes bastassem as falhas do profano, também o sagrado lhes trocou
as voltas.
Ao falar de peregrinos,
não podia deixar de fazer referência a um grupo deles (com quem tive o
privilégio de me cruzar e cuja imagem não esquecerei) de origem lituana, os
quais percorreram 4.400 quilómetros a pé até Fátima carregando uma cruz de 65
quilos, a sua digressão terminará em Guadalupe no México, a 31 de outubro. Fizeram
questão de frisar que os dois países onde foram melhor recebidos, foi em Portugal
e na Polónia, e o pior (vá-se lá saber porquê) foi na Alemanha. Um amigo meu,
arrumador de carros em “full time” e num pós doutoramento em antropologia social nas
horas vagas, sussurrou-me ao ouvido (não fosse o diabo tecê-las) que os
germânicos (rima com mecânicos), consideram essas exteriorizações como puras
perdas de tempo que podiam ser aproveitadas para produzir algo de útil.
Quanto ao fado, não me
refiro a ele em sentido restrito, mas à animação que grassa durante todo o
fim-de-semana televisivo com a deslocação das televisões a feiras e romarias,
onde montam arraiais com um considerável acervo de cantores e animadores que
põem Portugal a cantarolar e a bambolear. Ao mesmo tempo, vão alimentando a
esperança num prémio chorudo aos telespectadores mediante a marcação de um
número mágico que lhes vai sugando o saldo do telemóvel. Como se isto não
bastasse, à noite ainda somos brindados com dois programas que se digladiam freneticamente
entre si, um que escava o país à procura de novos cantores enquanto no outro se
procura descobrir os segredos dos concorrentes.
E, foi neste contexto de
quase desaire da seleção, das celebrações do 13 de outubro com a ausência da
imagem de N.ª Sr.ª de Fátima e de intoxicação pimba que o Governo decidiu
reunir em Conselho de Ministros e traçar as medidas orçamentais que irão sugar
as vítimas do costume. Portanto, a populaça estava devidamente entorpecida
quando o Dr. Paulo Portas veio sossegar os reformados deste país, almejava
pelas delícias e pelo conforto do leito quando o par de ilustres comentadores
dominicais entrou em ação e já estava nos braços de Morfeu quando o “meeting”
ministerial findou.
Assim, somos levados a
concluir que a receita do TRIEFE funcionou em pleno, e não fosse o Diabo
tecê-las, para o caso da terapia não ser suficiente, ainda se foram buscar mais
dois "fait-divers", de cariz analgésico, bastante cotados no imaginário
português. Num deles, o caso do “estripador de Lisboa”, Barra da Costa, com
aquele ar sério e circunspeto veio a terreiro afirmar que identificou o
estripador. No outro, o caso Madie, a Scotland Yard colocou em circulação dois
retratos robô que corresponderão a eventuais suspeitos do desaparecimento da
menor inglesa.
Logo, preocupações não nos faltam, por isso não vale a
pena perder tempo com essa maçada inútil do Orçamento 2014 e dos cortes
associados. E quem ousar tocar nesse assunto, onde quer que seja (metro,
comboio, café, autocarro….), para dar ares de elevada literacia, sujeita-se a
penalidades severas, pois um “bonus pater
famílias” não se pode preocupar com tais trivialidades.
© Vladimir da Lapa